Os personagens de “O hobbit: Uma jornada inesperada” de fato vivem uma expedição excepcional. Já o espectador do filme, se quiser passar por experiência similar, terá de mostrar paciência além da habitual: a superprodução, que entra em cartaz nesta sexta-feira (14), demora a engrenar. A jornada é inesperada – e é longa, por vezes cansativa. No último ato, vem a recompensa, com um respeitável par de sequências de ação. Se elas resultam, é porque são feitas à base de todos os recursos tecnológicos. E porque a técnica não se sobrepõe à narrativa. Não se espere um 3D revolucionário, que tem uso digno, mas de serventia discreta.
A narrativa em questão é do mesmo J.R.R. Tolkien que escreveu os livros da série “O senhor dos anéis”, já adaptados ao cinema. Repete-se também o diretor, Peter Jackson. Cronologicamente, “O hobbit: Uma jornada inesperada” precede a trilogia do anel e tem uma trama que, no texto, mirava o público infanto-juvenil. Providencialmente, a versão para o cinema amplia o foco, e o principal (e melhor) sintoma disso é um sarcasmo que poderia ser mais recorrente. Discursos constrangedores e solenes – “os verdadeiros heróis são aqueles que fazem boas ações no dia a dia” – cedem algum espaço a uma saudável ironia – “entendo que você duvidasse de minhas capacidades, já que eu próprio não confio tanto em mim”.
Ao longo de 2 horas e 49 minutos, “O hobbit: Uma jornada inesperada” mostra um grupo de anões que deseja reconquistar seu reino, tomado por um dragão. Nada a estranhar: são assim, mitológicas e medievais, as inspirações de Tolkien. Quem junta o grupo é o mago Gandalf (Ian McKellen), e ele decide convocar à viagem o hobbit Bilbo Bolseiro (Martin Freeman). É este o protagonista, um sujeito pequeno, fraco e pacato, ou seja, com nenhuma disposição para o combate físico. Tal falta de aptidão fornece material de humor.
Mas o bom proveito que se faz de Bilbo, e Freeman é bom no papel, não está replicado nos demais participantes da “jornada”, à exceção do líder dos 13 anões e de Gandalf. Peter Jackson poderia ter buscado referência, por exemplo, em “A caverna do dragão”: “O hobbit” erra precisamente onde o desenho acertava, no estabelecimento diferenciações funcionais entre os personagens. Isso ajudaria o filme, sobretudo, se levado em conta o tempo demorado que a audiência tem de conviver com a trupe.
Os vilões, por outro lado, estão bem definidos, conforme determinam as regras de superproduções que se pretendem blockbusters. E Peter Jackson e companhia apelam à quase escatologia para conceber criaturas de aspecto e comportamento repugnantes: existe um mago que tem secreções de pássaro no cabelo. Esse tipo de personagem vai entrando em cena no decorrer de uma “jornada” que oferece cenários de visual, incialmente, arrebatador.
O inconveniente é a edição, peca-se pelo excesso: em princípio, a sucessão de florestas, montanhas, cachoeiras etc. seduzem o olhar; passada uma hora meia, a variação infindável de paisagens já não basta. Periga o espectador sentir falta de ritmo. Ou sentir sono. Esse é um risco calculadamente assumido, dado que se optou por transformar “O hobbit” – um único livro – em três filmes, sendo “O hobbit: Uma jornada inesperada” o capítulo inaugural.
Quem se mantiver atento, entretanto, receberá em troca um desfecho empolgante. Em seu terço final, o longa ganha força e proporciona boas passagens, o que vale especialmente para a breve aparição do absurdo Gollum (Andy Serkis), monstrinho cultuado já desde “O senhor dos anéis”. Sob qualquer ângulo, é a melhor coisa de todo o filme: serve para demonstrar as habilidades da equipe técnica e para despertar a atenção, graças à sua figura horrorosa mas carismática e ao enfrentamento com Bilbo.
É possivelmente desse momento que a audiência se lembrará ao deixar a sessão. Ali está um conjunto de cenas que dependem tanto dos efeitos quanto do desempenho dos intérpretes. E ali Peter Jackson iguala os fanáticos por Tolkien e o espectador "comum". Faria bem se adotasse tal procedimento mais assiduamente.